sábado, 16 de maio de 2015

Constelação Barra Funda ou como estrelas nômades podem se visitar?

Atravessar com a performance, Coletivo Parabelo, Barra Funda SP/2015


Por Valéria Ribeiro
Perfomeira Visitante das Residências Nômades 
UNESP/Barra Funda e CIEJA/Ermelino Matarazzo

A visita dadaísta foi uma errância urbana que consistia em visitar os lugares banais da cidade ou os lugares que não tinham razão para existir, em contraposição à fetichização dos locais geralmente ligados à arte. De acordo com a arquiteta Paola Berenstein Jacques, no movimento modernista brasileiro várias visitas e excursões foram feitas por artistas brasileiros e estrangeiros às favelas cariocas.[1] Essas práticas de visitar algum lugar banal instabilizam a relação museológica dos espaços urbanos, deslocam a passividade do olhar e abrem caminhos para uma nova forma de olhar, de compor e se por com a cidade.
Se, no entanto, nos remetermos a uma noção um pouco mais ampliada da ideia de visita, poderemos encontrar uma série de relações possíveis nessa prática de ir em direção ao outro urbano. No caso dos dadaístas, tratava-se de visitar um lugar específico, crítica aos roteiros turísticos de visitas. Porém, em nossas práticas cotidianas incluímos também algumas formas de visitação. Essas, que poderiam ser chamadas de visitas sociais, para se diferenciarem das visitas turísticas, são praticadas de maneira formal e/ou informal.
Como exemplos de visitas formais, geralmente estão relacionadas a motivos comercias: Visite apartamento mobiliado/ Venha visitar a nossa nova loja/ Agende uma visita/ Faça um cartão de visita. Em outros casos, podem também se referir à ação do médico em visitar o paciente em recuperação ou logo após, ou vice-versa; e representantes de instituições para verificação do estado de algum lugar ou pessoa, por exemplo, a Vigilância Sanitária visitando um estabelecimento ou um Assistente Social que visita os pais ou futuros pais de uma criança.
Por outro lado, são nos exemplos mais informais dessas visitas sociais, que, de fato, pode acontecer uma abertura para o outro. É na ação de visitar alguém, próximo ou distante, que pode ser instabilizado o crescente individualismo presente na cidade. As visitas ou o ato de visitar movem um deslocamento em direção ao outro urbano, sem que haja uma intenção objetiva, partindo da livre escolha do visitante e da recepção do visitado, possibilitando trocas vindas de múltiplos lugares.
***
 Os passos se iniciam em busca de um mapa possível. Como se localizar? A cidade se abre num mundo gigantesco onde todo caminho é caminho, toda rua pode ser uma linha a ser seguida. Vou. Volto. Preciso de um mapa. Talvez possa pedir.
- Oi, você teria um mapa para me arrumar?
- Veja na cabine ao lado.
- Onde você quer chegar?
- Preciso andar por aqui. Você pode me ajudar?
Ela desenha um mapa no verso de um anúncio de empresa de Taxi, me explica alguns desses caminhos. Seus caminhos, ou, o que ela considera importante ser localizado naquele entorno.
Vou.
Seguir/guiar esse mapa sem placas. Orientar-me pela ajuda das pessoas, encontrar seus nomes:
Nilza, Berrel, Leonardo, Damião, Mariana, Regina, Sátiro, Negão, Buiu, Clayton, Vagner.
- Por que você quer saber o meu nome?
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Estacionamento. Lanchonete. Ponto de ônibus. Posto de gasolina. Uma coleção de rostos sem nome. Uma visita. Um lugar banal.
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A cidade se abre em labirinto. Infindáveis caminhos que desembocam em outros caminhos, que continuam a dar em outros caminhos. Toda rua é rua para entrar, todo caminho é caminho para seguir. Pessoas passam continuamente, locais se marcam como pontos de referência para encontrar-se em meio a lugares marcados. Aos poucos, pessoas-lugares: Jô, do táxi. Nilza, da lanchonete. Leonardo, do estacionamento. Damião, do posto de gasolina. Buiu, da oficina. Vagner, da Atento. Os locais que pertencem à grande cidade tornam-se um sobre-nome.
A visita, até então, próxima da ação dadaísta, ganha mais um contorno. Aqueles lugares já não são assim tão banais, mas, lugares que ganharam nomes através dos rostos, das pessoas que ali estão, da ação co-presente que corta o emudecimento das falas e se dirige em direção ao outro.
As pessoas e seus lugares vão desenhando esse mapa, fazem seu contorno tal qual as formas de uma constelação, modo antigo de localização através das estrelas. Pessoas que, como estrelas localizadas no céu, ajudam o caminhante a percorrer seus traçados pela Cidade-Universo.
Como encontrar um lugar em que se possa voltar? Como voltar?

Constelação Barra Funda: Primeira estrela

Em pouco tempo, aquele rosto já não é mais sem nome. É da Jô, que usa a camiseta do Led Zepellin, que faz horários alternados e que mês que vem vai mudar de turno. Talvez leve uns dois meses para encontrá-la novamente por aqui, nesse horário. Horário noturno, em que as estrelas podem nos mostrar os caminhos.
Em seu mapa-constelação da Barra Funda encontram-se lugares que ganharam nomes também. Novas estrelas.
A lembrança vem com a gente, pode ser lembrancinha, pode ser presente, pode ser presença. Lembrança fica, mas vai também. Lembrança que vai sem deixar de ficar. Sem a necessidade de que façamos dela um objeto, ela se organiza na voz, com sons e palavras, nas imagens criadas, nas sensações que são compartilhadas quando se conta sobre algo que foi vivido.
No caminho percorrido, recolho uma lembrança, vem de um jardim, aparentemente, seco. Alguns minutos e os movimentos da cidade percorrem esse jardim, já não tão seco assim, percebo algumas flores que insistem em permanecer, quase que escondidas.

“A lâmpada imita a lua,
Há flores,
No seco jardim
O trem passa e manda que todos se calem
Mas, todos continuam passando.”

Permaneço mais um tempo ali, observando aquele lugar e sendo observada pelos que passam. A cidade que não é feita para olhar, é para passar, é para esperar e atravessar. Sumir em meio à multidão de rostos sem nome que seguem para seus universos próprios. Caminho de volta até que a cabine que marca a primeira estrela dessa constelação apareça novamente. Chego. Ela sorri. Abre a porta e pede que eu chegue mais perto. Entrego-lhe a lembrança-souvenir recolhida no jardim. Ela agradece e a deixa junto das outras que recebeu na mesma noite: em sua própria lembrança.





[1] Sobre as visitas dadaístas e as visitas realizadas no período modernista no Brasil, ver JAQUES, Paola Berestein. “Elogio aos errantes”. Salvador : EDUFBA, 2012.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Tão perto, tão longe: sobre como se visita o outro que reside em nós

Blablação, Coletivo Parabelo, "Intervenção Urbana e Educação" Unesp/Barra Funda/2015

Por Bárbara Kanashiro
Perfomeira Residente das Residências Nômades 
UNESP/Barra Funda e CIEJA/Ermelino Matarazzo

No decorrer do que denominamos Residência Nômade do Instituto de Artes da Unesp, na Barra Funda, uma residência artística proposta pelo Coletivo Parabelo, recebemos visitantes de múltiplas localidades - estudantes e docentes do curso de licenciatura em teatro da Universidade Federal do Ceará, estudantes do curso do bacharelado em artes cênicas do IA/Unesp e artistas do grupo de teatro Buraco d ́Oráculo - em um evento que ocorreu no mês de abril no IA/Unesp, o ''Intervenção Urbana e Educação''. Dessa forma, abre-se a Residência Nômade para que esses visitantes possam realizar um Mutirão Performático junto ao Coletivo Parabelo, participando de seu processo de criação por um dia a partir da relação entre visitante e residente.
Algumas questões emergiram nessa relação. Se partimos da premissa de que o mutirão implica em um trabalho em comum, de comprometimento e doação de si ao outro, como  se compõe com o outro urbano? Como performamos juntos? Carregando essas e outras inquietações, partimos sem direção pelas imediações da Barra Funda num dia nublado.
O segredo da busca é que não se acha, diria o poeta. O caminho em direção ao outro é uma viagem a infinitos mundos onde o que se procura é o próprio caminhar. Aquele que caminha, não raro, desestabiliza certezas ao perceber o escuro em meio à luz de seu tempo, sendo assim capaz de interpelá-lo. A ação de compor e de se por com a cidade, a composição urbana convoca a perturbação dos sentidos, a alteração de estados corporais, a iminência de poéticas do cotidiano no corpo a corpo do sujeito com a pólis. Ação política que exige ao mesmo tempo uma atitude ética perante a vida, para não colocar a alteridade à sombra da cidadania.

No período da noite, quatro integrantes do Coletivo Parabelo realizaram uma Blablação como palestra: a ação de ler artigos acadêmicos e narrativas errantes ao mesmo tempo em que abocanha um punhado de macarrão de letrinhas e vomita na mesa. Uma conversa se iniciou. Os corpos urbanos erráticos do artigo acadêmico foram associados às formas de vida dos coletores de material reciclável no Ceará, de como fazem do seu trabalho um modo de existir e resistir na cidade. As tensões que perpassam as Intervenções Urbanas numa escola nordestina pareciam familiares àquelas que se apresentam nas Performances Urbanas de uma universidade católica do sudeste. Ao final de um dia de intensidades à flor da pele, o dito outro urbano adquiriu rosto, nome, feição, sotaque. Infinita conjunção de paisagens e tonalidades de afetos que configuram singularidades, percebendo que o outro está tão perto e tão longe quanto a capacidade de perceber e interpelar o escuro.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Residências Nômades

Por Denise Rachel e Diego Marques
Perfomeiros Residentes das Residências Nômades 
UNESP/Barra Funda e CIEJA/Ermelino Matarazzo


As Residências Nômades consistem na proposição de residências artísticas realizadas em diferentes instituições de ensino, a fim de investigar processos criativos em performance urbana de modo a testar pedagogias da performance. Ao nos remetermos aos percursos nômades de outros povos, como os Walkabouts Aborígenes e as Guatás Guaranis, encontramos no nomadismo uma combinação entre deslocamento e assentamento de maneira a atender às necessidades de uma coletividade que se organiza através de uma relação sensível com um dado contexto. Neste momento, as Residências Nômades acontecem no Instituto de Artes da UNESP na Barra Funda e no CIEJA Ermelino Matarazzo, localizados respectivamente nas zonas oeste e leste de São Paulo.

Assim, as Residências Nômades propõem o deslocamento entre o ensino superior e o ensino básico como possibilidade de construção de conhecimento em arte da performance.  Para tanto, as residências artísticas nas instituições de ensino são organizadas através do que denominamos Mutirões Performáticos. A palavra mutirão traz em sua raiz etimológica no tupi-guarani justamente a ideia de "trabalho em comum". Remete a práticas ancestrais da construção em conjunto, do prestar auxílio para criação de espacialidades nas quais se exercita a doação mútua, deste modo, o mutirão é uma prática perpetuada nos espaços rurais e urbanos pelas camadas ditas populares da sociedade e, portanto, consiste em uma tática periférica que traz à tona a política de ação direta, através da noção de autogestão.


É através deste entendimento que o Coletivo Parabelo investiga procedimentos criativos em performance urbana, ao promover a instauração de espaços de performação em contextos de educação formal e não-formal, nos quais investigamos a possibilidade de um “fazer com” em detrimento de um “fazer para”. Desse modo, as chamadas Residências Nômades são mobilizadas pelas seguintes questões: como aprendemos a performar com a cidade? Pode a aula de artes constituir-se em um acontecimento performático? Ou ainda: como performar juntos?  Tais inquietações permeiam às pesquisas de mestrado e doutorado vinculadas ao programa de pós-graduação do Instituto de Artes da UNESP, propostas por Diego Marques e Denise Rachel, ambos integrantes do Coletivo Parabelo, respectivamente intituladas "Por uma pedagogia do erro: errância urbana como invenção de si" e "Perfografia: performer como cartógrafo, performance como cartografia no ensino de artes", com orientação da Profª Drª Carminda Mendes André. 

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Mulher da Rua

Grampo, Bárbara Kanashiro, Natal/RN, 2012


Por Bárbara Kanashiro

Condutor/ 1ª Testemunha: ZENILSON GONZAGA DA SILVA, Sd/PM identidade nº 12.269 PM/RN, lotado na 2 ª CIA DO 1º BPM, nesta capital, Soldado da PM, RG/PM: 14.964, lotado na CIPTUR, nesta capital.
VERSÃO: QUE encontrava-se de serviço no trailer da C&A, oportunidade em que presenciou um grupo de jovens no calçadão da av. João Pessoa, em direção às Lojas Americanas, na av. Rio Branco, ocasião em que entre eles estava a ora autora do fato sem os trajes superiores, com os seios à mostra; QUE na ocasião, populares acompanhados de crianças, indignados, vieram informar acerca do fato, dizendo que ela estaria completamente nua, motivo pelo qual seguiu direção até ela realizar abordagem; QUE referidos cidadãos disseram-lhe que a autora do fato estaria na loja Otoch, ocasião em que seguiu ao local na companhia do Sd/ PM Jariano, oportunidade em que a encontrou, desta feita, totalmente desnuda; QUE na ocasião providenciou para que a jovem fosse coberta e a encaminhou até o trailer, local onde acionou oficial de área 1, Sub-tenente Agostinho, a fim de noticiar o fato ocorrido, o qual de lá auxiliou na condução da autora do fato até esta delegacia; QUE ela, autora do fato, alegou em sua defesa que tinha autorização de órgãos públicos para sua conduta; QUE nada mais disse.
A rua não é lugar pra mulher. Mulher na rua fica falada. Mulher da rua é pra se vender. Mulher de rua, então, piorou. Estava de saia curta, coitada, não deu outra. De uma clausura a outra, só acompanhada do marido. É para o seu próprio bem. Você não quer que algo de mal lhe aconteça por aí, quer?
Mulher da rua, mulher perdida, mulher rodada, mulher da zona, mulher do mundo, mulher pública, mulher de vida fácil, garota de programa, meretriz, prostituta, rameira, cachorra, puta, rapariga, travesti, biscate, mulher da vida, piranha, vadia, vagabunda, quenga, mulher de esquina, bicha, devassa, mulher errante, mundana, mulher do povo, sapa, pistoleira. A rua não é lugar pra mulher. Mas não só pra mulher. Quem faz do corpo seu desejo tampouco tem lugar na rua.
Acontece que o desejo não cabe num só corpo e precisa se espraiar. Conhecer outras paragens. QUEM ARRANCA do peito seu coração para a noite deseja a rosa. Quem arranca do peito seu coração para a noite e o atira ao alto não erra o alvo. Vai ao encontro  do desconhecido, da alteridade radical, da alma encantadora das ruas.
A mulher que faz da rua o seu lugar põe o corpo à prova. Caminhar oferecendo grampos na rua com seios, nádegas e vagina à mostra configura crime de ato obsceno de acordo com o Artigo 233 do código penal brasileiro. Por isso eu miro os exemplos das mulheres de rua, das mulheres da rua, das mulheres na rua. Por isso, em noites quentes, caminho munida de grampos pelas avenidas.


domingo, 8 de março de 2015

Errantes, Erráticos, Errabundos: performador como errante urbano, performance como errância urbana

Catadora de histórias, Eliane Andrade, Interlagos/SP 2011
(Artigo publicado originalmente na revista Conceição vinculada ao PPG Artes da Cena IA/Unicamp)

 Diego MARQUES[1]

Resumo:  Como desdomesticar a relação corpo e cidade? A partir desta questão o presente artigo procura realizar uma leitura crítica das implicações éticas, estéticas e políticas da experiência corporal urbana contemporânea. Para tanto, propõe o artista da performance como errante urbano e a arte da performance como errância urbana.
Palavras chave: corpo, performance, cidade.


 O que seria a união entre ética e estética, sem a política, senão uma exaltação do indivíduo? Como se arriscar na associação entre a estética e a política, sem a ética, depois da terrível experiência nazista? Por que insistir na relação privilegiada da política com a ética, sem a estética, após o enfado dos últimos anos na trajetória da esquerda?
Tatiana Roque

“Tenho muito o que fazer. Preparo o meu próximo erro.”
Bertold Brecht


Uma história de performance
Ou
Uma história solta,
Uma história pipa. [2]

Um homem com traje social amarra uma corda no colarinho de sua camisa e lança-a em meio aos corpos de passagem pelo centro de São Paulo. Três crianças se aproximam, puxam a corda e levam o homem para passear pela rua Direita, em seguida, tentam adestrá-lo. Vendedores ambulantes intervêm. Crianças, ambulantes e transeuntes discutem o paradeiro daquele homem. Juntos questionam o papel da polícia militar nas ruas do centro de São Paulo. Crianças, ambulantes e transeuntes levantam hipóteses sobre o destino daquele homem e desenvolvem estratégias para ajudá-lo. Homem com traje social tira a corda do pescoço e desaparece caminhando em meio à multidão.[3]
Performance e cidade:
O que o corpo pode mover?
Esta é apenas uma dentre tantas outras histórias de performances que parecem compartilhar uma inquietação semelhante: como desdomesticar a relação corpo e cidade? Grosso modo, entendemos que esta domesticação consiste no acionamento das estratégias assépticas, disciplinares e espetaculares que configuram a relação corpo e cidade na contemporaneidade. A título de tatearmos este fenômeno, parece importante evidenciarmos o papel que o chamado fantasma do corpo social desempenha no processo de domesticação dos corpos cotidianos urbanos. Segundo o filósofo francês Michel Foucault, tal assombração possui uma função medicamentosa ao promover o anestesiamento dos corpos cotidianos urbanos. Diante do medo de perceberem-se alijados do dito corpo social, os corpos cotidianos urbanos parecem operar em uma espécie de entorpecimento corporal, uma indistinção entre autopreservação e particularização que, no limite, configura a relação corpo e cidade como algo próximo de uma experiência narcótica (SENNET, 2008).  Assim, inferimos que são os chamados corpos cotidianos urbanos que atualizam as estratégias que segregam, esquadrinham e desertificam as cidades contemporâneas, por meio da vulgarização da indiferença que varre o espaço urbano cotidianamente. Este desinteresse absoluto pelo outro urbano pode ser lido como índice do que chamaremos aqui de anestética corporal urbana. Isto é, uma forma de embotamento sensório-motor promovido pela sedimentação de uma série de automatismos cognitivos-perceptivos que caracterizam o empobrecimento da experiência corporal urbana.
A anestética corporal urbana consiste na hibridação das estratégias da indiferença, acionadas para salvaguardar os corpos cotidianos urbanos individualmente. De modo que os corpos ditos doentes, delinquentes, vadios, ou seja, os corpos supostamente improdutivos, são expelidos para as margens do espaço urbano devido aos riscos de contágio que estes pretensamente oferecem à saúde do dito corpo social. Desta maneira, a anestética corporal urbana deriva do conjunto de estratégias assépticas, disciplinares e espetaculares que domesticam os corpos cotidianos urbanos conforme arregimentam o chamado corpo social.  O próprio Foucault aponta que é somente na supressão de todos os corpos individuais que o corpo social aparece nas sociedades modernas. Isto é, o corpo social não pode ser tomado como a universalização dos corpos cidadãos. Antes disso, o corpo social é configurado pela materialização das estratégias do poder que domesticam, neste caso, os corpos cotidianos urbanos.  Logo, se estivermos de acordo que o que estamos chamando aqui de anestética corporal urbana pode ser lida como um índice da domesticação da relação corpo e cidade, qualquer investimento no desmantelamento desta domesticidade, talvez, precise se colocar diante de perguntas como, por exemplo: como tornar o corpo cotidiano urbano sensível à presença do outro nele mesmo? De que modo uma outridade urbana deixaria de representar o contágio da ameaça, ao inaugurar a promessa de outras cidades possíveis?
 Se atentarmos para certa genealogia da arte da performance, encontramos desde o final do século XIX performadores interessados em ativar a relação corpo e polis, ao experimentarem uma alteridade radical com o outro urbano através das chamadas errâncias urbanas[4] (JACQUES, 2012). Seja como uma provocação frente ao processo de modernização das cidades europeias e brasileiras na passagem do século XIX para o século XX, seja como uma denúncia dos regimes ditatoriais que assolaram a América Latina e o Leste Europeu em meados do século XX. Ou então, como um questionamento à estabilização do mercado de arte no eixo Europa-Estados Unidos neste mesmo período e, mais recentemente, como crítica ao processo de gentrificação do espaço público que tenciona a vida urbana neste começo de século XXI. Ao longo dos últimos cem anos, pelo menos, performers podem ser lidos como errantes urbanos, assim como, a performance pode ser entendida como errância urbana.
Desvio, Desvario, Deriva:
 – O termo performance é errante. A título de exemplo, em uma rápida consulta ao Google Notícias Brasil, a palavra aparece no cabeçalho de notícias como: Substância usada por Tyson Gay e Powell melhora performance, CEO da Coca-Cola insatisfeito com a performance da empresa, Julho é mês de performance artística no Parque Dona Lindu no Recife, Mulher de Diego Cavalieri elogia performance do marido na cama, Honda lança pacote de performance para o Accord Coupe, ou ainda, Ativistas fazem performance contra consumo de carne de cães na China. Como podemos observar, a palavra performance aparece anexada a uma pluralidade de agentes em contextos diversificados. Embora frisemos que estamos interessados na arte da performance a pergunta “o que é performance?” ainda nos parece uma falsa questão (FABIÃO, 2009).  Isto porque esta não pode ser definida com uma única resposta. A performance é indefinível por natureza. Pelo menos no que diz respeito ao campo lexical, a indefinibilidade ainda tem sido a tática de resistência da performance. Contudo, é importante salientarmos que a indefinição do termo não está comprometida com a produção de nenhum tipo de obscurantismo, ou então, com alguma espécie de hermetismo. Pelo contrário. Acreditamos que é justamente através desta resistência a definições prontas que a performance convoca a oxigenação do pensamento. Ao incitar o desmanche dos binarismos que cerceiam, estancam, censuram o ato de pensar, a performance nos convida à experimentação da erraticidade imanente ao pensamento. A própria reflexão parece ser da ordem da errância. Desta forma, ao nos confrontarmos com a pergunta: “Afinal, o que é performance?”, convém lembrarmos que a performance é errante e, portanto, avessa às armadilhas que caracterizam as soluções finais.  –
Ao errarem para além dos muros das instituições artísticas, performeiros parecem estar interessados em experimentar o corpo em deslocamento pela cidade, assim como, a cidade em deslocamento pelo corpo, a fim de testar a emergência do que chamamos de corpo urbano errático (MARQUES, 2013). Ao questionar: o que o corpo pode mover no espaço urbano? Ou ainda, que corpo pode mover na cidade? O corpo urbano errático promove um questionamento ético-político e estético das cidades contemporâneas (FABIÃO, 2008).  De acordo com o crítico e curador de arte francês Nicolas Bourriaud, podemos admitir a hipótese de que o corpo urbano errático tem promovido um deslocamento na historiografia da arte deste início de século, semelhante àquele provocado pelo readymade duchampiano nos primórdios do século passado. Isto pois, o corpo urbano errático é aquele que desloca os espaços da artisticidade ao mesmo tempo em que potencializa a politicidade do corpo. Ele emerge como a carne disruptora do fantasma do corpo social, ou seja, como um operador de resistência às estratégias assépticas, disciplinares e espetaculares ativadas pelos corpos cotidianos urbanos. Para tanto, o corpo urbano errático experimenta um corpo a corpo amoroso com a cidade através de uma apreensão sensível do espaço urbano, para aludirmos aos dizeres do filósofo Michel de Certeau, ou dito de outro modo, o performador como errante urbano é aquele que está interessado em investigar a performance como errância urbana como possibilidade de poetizar o urbano, para utilizarmos uma expressão do artista brasileiro Hélio Oiticica.
Performance e Precariedade:
Performances da precariedade
Precariedade da performance
A performance como errância urbana muitas vezes pode ser confundida com um ato de solidariedade na abjeção. Segundo o performeiro mexicano Guillermo Gómez-Peña, o performador como errante urbano se reconhece no olhar daqueles que vivem nas esquinas da sociedade, os chamados órfãos sociais. Gómez-Peña acredita que a performance como errância urbana é um mergulho nos oceanos da miséria na qual nada a população pobre ou em situação de rua. O que marca a diferença entre uns e outros é o nível de profundidade do mergulho na realidade social (2005, p. 210).  Não por acaso, ainda de acordo com Guillermo Gómez Penã, a reciclagem seria o principal modo de produção do artista da performance (2005, p.203). Embora o performer como errante urbano erre por vontade própria, este parece emular as práticas daqueles que erram por necessidade, daqueles que são soprados para a opacidade pela fantasmagoria do corpo social. A possível associação entre a performance como errância urbana e a reciclagem pode ser lida como uma alusão aos outrora conhecidos como trapeiros e aos quais hoje chamamos de catadores, ou ainda, sucateiros. Corpos anoitecidos que caminham contra os ventos do progresso e amanhecem ao recolher o lixo no qual tropeçam. Corpos cuja materialidade é tida como desimportante, cujas vidas não são consideradas vidas e aos quais a filósofa estadunidense Judith Butler chamou de corpos abjetos.
Ainda que a autora nos ajude a perceber o obscuro, ela o faz com a acuidade de quem sabe que é preciso ser prudente com o excesso de luminosidade, pois esta também costuma ser produtora de invisibilidades. Butler evita oferecer-nos exemplos de corpos abjetos, o que entendemos tratar-se de um determinado cuidado de quem faz ver sem cegar pelas luzes, de um certo esforço para não incluir para excluir aqueles que já padeceriam na exclusão. Contudo, uma conversa com a pesquisadora brasileira Christine Greiner auxilia a testarmos algumas pontes entre os chamados corpos abjetos e o performador como errante urbano. Em seu livro O Corpo em Crise: novas pistas e os curtos-circuitos das representações (2010), Greiner atenta para o fato de que assim como as partes baixas do corpo, as partes baixas das cidades são costumeiramente intocáveis. Em seguida, afirma: “o lúmpen é o abjeto de todas as classes sociais.” (GREINER, 2010).
Em uma possível tradução do alemão para o português, lúmpen significa ‘homem trapo’. Uma alusão ao termo foi feita por Karl Marx e Friedrich Engels em A Ideologia Alemã (1845), quando os filósofos alemães teriam empregado pela primeira vez o termo lumpemproletariado (2011, p.70). Para os autores, estes representam uma ameaça para a consciência revolucionária do proletariado e foram descritos por Marx no 18 de Brumário de Luís Bonaparte (1874) como vagabundos, ex-presidiários, saltimbancos, delinquentes, jogadores, tocadores de realejo, escrevinhadores, trapeiros, mendigos, dentre outros. O autor os definia ainda como uma massa indefinida, desintegrada (2011, p. 97). Desta forma, o chamado lumpemproletariado consiste no avesso da fantasmática do corpo social. Os corpos abjetos aos quais evitaríamos perceber, a fim de não encararmos o que eles dizem a respeito de cada um de nós. E, quando surpreendentemente o fazemos, muitas vezes parecemos não nos assustarmos com o reflexo da nossa desumanização. De modo que nos tornamos aqueles que aparentam não ter mais força de estar à altura de nossa fraqueza, uma vez que permanecemos constantemente na fraqueza de cultivar apenas a nossa força (PELBÁRT,2000).
Outra história de performance
Ou
Outra história pipa,
Outra história solta.
Um homem caminha pela rua e recolhe um lúmpen do chão como um trapo. Coloca-o nos ombros e adentra sala de exposição de um museu de arte moderna. Apoia o corpo abjeto no cubo branco e traça uma linha de sujeira nas paredes. Em seguida, deixa o museu caminhando ao lado do lumpemproletário. [5]
De acordo com a discussão proposta aqui, acreditamos que estes corpos sujos, fétidos e envelhecidos se contrapõem à materialização da idealização do corpo cotidiano urbano. Assim, o performador como errante urbano tece um elogio às performances corporais da precariedade, uma vez que estas configuram uma espécie de triunfo do corpo que instabiliza as estratégias assépticas, disciplinares e espetaculares que domesticam a relação corpo e cidade. Isto é, a performance como errância urbana pode ser lida como uma operadora de resistência ao convocar a possibilidade de criação na escassez.  Neste sentido, aquilo que é descartado pelo espectro do corpo social é coletado pelo corpo urbano errático, de forma que este experimenta estes materiais descartáveis encontrados ao acaso pela cidade como extensões corporais. Plástico, papel, compensados, jornais, lata, espumas e arames assumem uma relação de contiguidade com o corpo urbano errático, por meio de um certo embrulhamento corporal. Assim, aquilo que antes foi utilizado geralmente para embalar produtos, ao ser moldado como uma extensão do corpo urbano errático passar a proteger a vida.   Ao errar, coletar e reciclar o corpo urbano errático coloca uma questão ética, estética e política para as cidades contemporâneas, ao nos sensibilizar para uma reflexão sobre a multiplicidade de significados imanentes a vitalidade daquilo que é descartável, daqueles que são marginalizados. Através da metamorfose da sobrevivência em forma de existência, os corpos urbanos erráticos transformam o biopoder em biopotência.[6] Entretanto, a relação de indistinção do corpo urbano errático com esses materiais guarda uma ambiguidade. Nessa proximidade com jornais, sacolas plásticas e papelão, por exemplo, o performeiro como errante urbano aparece desaparecendo na poluição de determinadas paisagens urbanas. De tal modo, o duplo invisibilidade- vulnerabilidade funciona tanto como possibilidade de proteção quanto de exposição às inúmeras formas de violência a qual o dito lumpemproletariado está assujeitado cotidianamente nas cidades contemporâneas.
Contudo, em detrimento de recorrer a temas como os limites corporais, a autobiografia e o pós-humano em busca do risco, ou ainda, da liminaridade costumeiramente associada às ações performáticas, a performance como errância urbana incita uma perda de si mesmo nos espaços da sub-humanização, da caducidade e da precariedade ao camuflar-se em meio aquilo que é excretado, alijado, descartado pelo fantasma do corpo social – restos, cacos, detritos. Onde a sociedade do desperdício decreta o fim, o corpo urbano errático emerge como a possibilidade do começo. Ao descentralizar as discussões do âmbito do individual, do econômico e do privado, a performance como errância urbana potencializa o coletivo, o público e o político. Para tanto, o performer como errante urbano investe na precariedade da performance ao desafiar a moral pela depravação, a lógica pelo desvio e o socioeconômico pela vagabundagem, conforme instabiliza a anestética corporal que caracteriza o individualismo urbano ao experimentar uma alteridade radical com o outro (FABIÃO, 2011).  Em alguma instância, inferimos que este escancaramento para a outridade urbana é uma insurgência contra a inoperância do comum que rege a fantasmagoria do corpo social e assombra as sociedades modernas.
Performance e comum:
Mover com
Com mover
Segundo Christine Greiner, podemos entender que o outro é uma impropriedade, ou ainda, aquilo que não é próprio. Desta maneira, é na possibilidade de um escancaramento para o outro que damos a ignição necessária para os processos de comunicação que configuram uma comunidade. Através de uma citação ao filósofo italiano Roberto Espósito, a autora assinala os dois radicais que compõem a etimologia da palavra communitas, termo que significa justamente comunidade em latim. Cum anuncia a presença de um outro além de si, enquanto Munus possui pelo menos três significações: onus, officium e donum, sendo que este último pode ser traduzido como dever, dívida, ou então, obrigação. Logo, uma comunidade não é constituída por nenhuma essência, ou ainda, qualquer substância. A comunidade é um tipo de compromisso no qual um doa-se incondicionalmente ao outro. Neste sentido, a comunidade é um acontecimento no qual a ausência de propriedade, de identidade, de domínio de si expõe as condições de uma política futura. O que há de verdadeiramente comum na comunidade é o munus, ou seja, o comprometimento com o outro (GREINER, 2013). Ainda citando Espósito, Christine Greiner afirma que a experiência da comunidade apresenta a possibilidade de ser arrastado para fora de si como forma de experimentar a vitalidade imanente à irrupção do desconhecido, ao encontro com o inesperado.
Assim, chamamos a atenção para o fato de que este extravio de controle sobre si consiste em um princípio ético para o performador como errante urbano. Para ele perder-se também é caminho. A performance como errância urbana consiste justamente nesta arte de extraviar-se de si, de perder-se pelas cidades, de abrir-se para um encontro fortuito com o outro urbano, de modo que talvez possamos ouvir nos passos do corpo urbano errático algo como os murmúrios do comum. Pois, o performer como errante urbano é aquele que desfaz em certa medida a si mesmo, através de uma exposição radical a outridade urbana, ou seja, por meio de uma experimentação de modos de ser em comum. Neste viés, Greiner cita ainda o filósofo Jean-Luc Nancy, de acordo com o qual o Cum é aquilo que nos lança frente a frente com os outros.  Investigar a performance como errância urbana exige a experiência de ser com, ou ainda, a necessidade de ser comovido no mais amplo sentido do termo – mover com, com mover, mover-se com o outro (AGRA, 2012).
Portanto, acreditamos que a performance como errância urbana não se enquadra naquilo que as chamadas Arte Cidadã e Arte Pública convencionaram chamar de intervenção urbana, ou em alguns casos, de interferência urbana. Ao invés disso, o performer como errante urbano propõe a realização daquilo que Maria Beatriz de Medeiros chama de Composição Urbana (MEDEIROS, 2008). Para a teórica da performance brasileira, Composições Urbanas implicam na possibilidade de desnormatizar o corpo cotidiano urbano através da instauração de processos nomadizantes, isto é, trajetos poéticos nos quais podemos nos desreificar ao nos tornarmos errantes, conforme transfazemos os caminhos do outro. Composições Urbanas instabilizam a primazia do sentido da visão que nos orienta pelo espaço urbano, através da experimentação de alterações de estados corporais ao afetarmos e sermos afetados no corpo a corpo com a cidade. Para além de um debate terminológico, o que parece estar em jogo no uso do conceito de Composição Urbana é a tentativa de tirar a questão da alteridade da sombra da cidadania. De forma que a diferença não se coloque apenas como um axioma democrático, à medida que a performance como errância urbana seja o exercício de uma paixão pela incerteza criadora, no qual a diferença esteja comprometida com a alteridade necessária para a produção de singularidade. (ROLNIK, 2014). Nestes casos, trata-se daquilo que o filósofo italiano Giorgio Agamben chamou de singularidade qualquer. Performances como errâncias urbanas são manifestações singulares, manifestações do qual-quer, uma vez que estas abrem mão de qualquer representatividade, de qualquer identidade, de qualquer território, para se constituírem nos fluxos de alteridade produtora de singularidades. Performers como errantes urbanos podem aparecer desaparecendo em qualquer lugar, a qualquer hora, podem ser qualquer um. Deste modo, as singularidades quaisquer podem ser entendidas como linhas de fuga diante da ação do poder instituído, ao denunciarem a crise da política representativa moderna (AGAMBEN apud GREINER, 2013).
O performador como errante urbano é aquele que exercita um certo desmanchamento de si com a prudência necessária daquele que se compõe, decompõe e recompõe sempre em correlação com o outro urbano. Portanto, a performance como errância urbana desmantela a noção de um sujeito que dispõe de uma metodologia para agir sobre um objeto. Ao contrário. Ela propõe uma inversão dos entendimentos convencionais de metodologia, uma vez que ela pressupõe um hodós metá em detrimento de um método propriamente dito, ou seja, como não há um caminho dado a priori, a performance como errância urbana se configura como um caminho que só se faz caminhando. Através dos movimentos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização imanentes a qualquer errância, o performador como errante urbano executa um árduo exercício sobre si ao testar incessantemente modos de se pôr com, de com pôr com o outro: o outro em si, o outro urbano. Por último, mas não menos importante, gostaríamos de esboçar uma questão. Para além dos legítimos pressupostos ativistas que parecem pautar as discussões em torno da relação corpo, performance e cidade, o performeiro como errante urbano e a performance como errância urbana parecem anunciar a possibilidade de um afetivismo.  Nestes tempos em que somos mobilizados pelo medo, pelo ressentimento e pela indiferença que tonificam nossa anestética corporal urbana, compartilhamos aqui uma inquietação: se a política pode ser entendida como a arte de afetar os corpos, um dos desafios políticos do nosso tempo não seria nos lançarmos na errância imprescindível para a revitalização dos nossos afetos? (SAFATLE, 2013). Perder o sentido, para abrir os sentidos.
Bibliografia
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GREINER, Christine. O corpo em Crise: Novas Pistas e o Curto Circuito das Representações. Ed: Annablume. São Paulo, 2010.
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JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador: EDUFBA, 2012.
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MARX, Karl Heinrich. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011.
MARX, Karl Heinrich; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). Trad. Rubens Enderle, Nélio Schneider, Luciano C. Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.
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ROLNIK, Suely. À sombra da cidadania: alteridade, homem da ética e reinvenção da democracia. Artigo disponível em: dev.nucleodesubjetividade.net/0.4/wpcontent/.../09/homemetica.pdf. Acesso em: 20 de dezembro de 2014.
SAFATLE, Vladimir. Uma política dos afetos. In Folha de São Paulo, artigo publicado em 07 de janeiro de 2014.
SENNET, Richard. Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Trad. Marcos Aarão Reis, Rio de Janeiro: Record, 2010.
  



[1] Performer, graduado em Comunicação das Artes do Corpo pela PUC-SP e mestrando em artes no IA da UNESP. É integrante do Coletivo Parabelo através do qual pesquisa relações entre corpo, performance e cidade desde 2005. E-mail diegoalvesmarques@hotmail.com

[2]  Esta e outras estratégias de escrita presentes neste artigo são livre inspiradas nas proposições da teórica e performer brasileira Eleonora Fabião cujas referências encontram-se ao final do mesmo.

[3] Coletivo Parabelo, Animal Laborans. 201o. São Paulo. Performance. https://www.youtube.com/watch?v=ThjUA3H_474 Acesso em 20/12/2014.

[4] Flanâncias, visitas dadaístas, deambulações, experiências, derivas, delirium ambulatorium, fluxus walk, manouevres, transurbâncias, zonzos e perfografias são exemplos de errâncias urbanas.

[5] Rosemberg Sandoval, Mugre. 1999. Colômbia. Performance.

[6] Alguns exemplos neste sentido, como as performances Gentrificação (2011/2012) e Catadora de Histórias (2011,) podem ser observadas no site do Coletivo Parabelo www.coletivoparabelo.com

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Arqueologia de si: a anatomia do anjo da história.


Por Diego Marques
 “A gente escreve o que ouve, nunca o que houve”
Oswald de Andrade

Enquanto o amontado de escombros cresce até o céu. Performance. Coletivo Parabelo + alunos da graduação em Comunicação das Artes do Corpo da PUC/SP. Dezembro. 2015. 
Escuto nas vozes que ouço ecos das vozes que emudeceram. Vozes do silêncio. Um silêncio que rasga a pele, que corta o peito. Um silêncio que é apelo daqueles que foram desfeitos no que eram sem jamais chegar a ser o que quiseram. Apelo silencioso que perfura o esterno até que se sinta uma frágil força messiânica vibrar nos ossos. Não se pode rejeitar um apelo, não impunemente. Por isso, sou um rosto dirigido ao passado. Encaro-o fixamente, com os olhos escancarados, a boca dilatada e as asas bem abertas. Confundo-me com o Ângelus Novus, o quadro de Klee. Tal qual o Anjo da História, gostaria de deter-me para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Contudo, uma tempestade sopra do paraíso, impelindo-me irresistivelmente ao futuro. Futuro ao qual viro as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Encravo as unhas nas costelas. Cavo, cavo. Escavo a carne. O sangue goteja como orvalho, escorre pelas pontas dos dedos. Cavo, escavo, cavo. As unhas desmancham, roem as faces dos ossos. Escavo, cavo, cavo, cavo. Ouço ecos das vozes que emudeceram. É D.Ana, minha avó paterna. Ela me fala da fome que decepou as mãos de sua mãe. Mãos alvas, lânguidas e enrugadas que seguram um pote de torresmo para o alto. Sol a pino, céu azul ardido e chão de terra batida. Uma mãe sem rosto. Esta é a única lembrança que minha avó traz de sua mãe. Recordação de infância. Eu sou bisneto da seca de 1915. Eu sou neto da fome imemorial. Não caibo mais nestes ossos, não caibo mais nestas veias. Gostaria de deter-me para acordar os mortos e juntar os fragmentos, mas, uma tempestade sopra do paraíso, impelindo-me irresistivelmente ao futuro. Futuro ao qual viro as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Ouço ecos das vozes que emudeceram. Abro a broca em um grito mudo. Todas as bocas que se abriram antes da minha, me encontram neste momento. Um silêncio que rasga a pele, que corta o peito. Encravo as unhas nas costelas. Escavo, cavo, cavo, cavo. Tateio vísceras, cacos, excrementos, destroços.  Como escovar a história a contrapelo na pele?

[Texto escrito a partir da performance Enquanto o amontoado de escombros cresce até o céu, realizada no TUCA Arena em dezembro de 2015, como parte da monografia Errantes, Erráticos e Errabundos: por uma monografia trapeira, orientada pela Profª Ms. Dalva Aparecida Garcia]